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Simpósio Huizinga e a Modernidade



Há cem anos atrás, publicava-se em Haarlem aquele que seria o livro capital de Johan Huizinga: Herfsttij der Middeleeuwen. Dotado de subtítulo extremamente significativo (“Estudo sobre as formas de vida e de pensamento dos séculos XIV e XV na França e nos Países Baixos”), O Outono da Idade Média trouxe uma contribuição inequívoca para a profunda reviravolta que os estudos históricos viriam a experimentar ao longo do século XX.


O aniversário de cem anos da publicação de O Outono da Idade Média oferece-nos uma oportunidade ímpar para discutirmos não apenas esse belo e instigante livro, mas a obra do historiador neerlandês de forma mais ampla. Esse é o objetivo principal do Simpósio Huizinga e a Modernidade: Passagens, Confluências, Rupturas (Cem anos de O Outono da Idade Média), que promoveremos de 25 a 27 de setembro de 2019 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Nas Conferências de abertura e de encerramento, nas Mesas a serem promovidas nos períodos da manhã e nas Sessões de Comunicações vespertinas, o Simpósio procurará enfocar diferentes aspectos presentes na vasta produção de Johan Huizinga. Acreditamos que, como resultado desse olhar dirigido não só àquele que foi, de longe, seu livro mais famoso, mas a outras de suas importantes publicações, o Simpósio colaborará para atualizar o debate sobre essa obra significativa; mais ainda, cremos ser possível construir, através dessas análises, pontes importantes entre a realidade vivida por Huizinga no momento de produção de seus textos e o próprio instante em que vivemos. A pesquisa e os interesses historiográficos, afinal de contas, nunca se desligam do presente, do qual sorvem suas principais energias.


Frente ao insólito contexto atual, em que, aberta ou sub-repticiamente, ênfases nacionalistas retornam às agendas políticas e às manchetes dos meios de comunicação, a obra de Johan Huizinga permanece a de um historiador que, no próprio momento em que se afirmava uma historiografia belga nacionalista, percebia o quanto essas construções oitocentistas precisavam ser desnaturalizadas. Sua obra fez isso no âmbito da história política, ao indicar a irrelevância das fronteiras nacionais contemporâneas para o estudo das profundas imbricações que gestaram as práticas políticas neerlandesas nos séculos XIV e XV. No âmbito da história cultural, foi gigantesca a contribuição de Huizinga ao assinalar que, no debate sobre o Renascimento, as paixões nacionais não deveriam continuar a alimentar guerras culturais entre o norte da Europa e a península itálica.


Uma perspectiva como essa coloca-nos ângulos extremamente frutíferos para a discussão. Mas é possível ir além e assinalar ainda outros aspectos que, incrustados na obra de Johan Huizinga, merecem análise e reconsideração. No estudo dos comportamentos políticos, Huizinga percebeu que era preciso levar em conta aspectos bastante ignorados: o ódio entre as famílias reinantes, os motivos partidários, a própria constituição de uma cultura da vingança. Dar importância a esses elementos em princípios do século XX, quando a herança ocidental-oitocentista ainda impunha, a conservadores e a revolucionários, a ilusão de que a política era campo dotado de pura objetividade científica, era arriscar-se a ser incompreendido ou, no mínimo, a passar por ingênuo cultor de temas “românticos”. Hoje, após os trabalhos de Pierre Ansart, seminais para pesquisas desenvolvidas em tantos quadrantes, é impossível ignorarmos que a prática política se tem feito com não pequena medida de paixão e que, portanto, as paixões na política são tema absolutamente central de nossa reflexão. Devemos a Huizinga um primeiro olhar, dirigido com curiosidade historiográfica, para esse objeto.

Certamente a abordagem de Huizinga causava estranheza em 1919; era possível rir-se dela, como fez aliás Oppermann, medievalista de Utrecht, ao se dirigir a Huizinga como “aquele detetive”. A reprimenda, carregada de ironia, transmutou-se em elogio num novo contexto em que o paradigma indiciário e o trabalho com a cultura em bases morfológicas apareceram (desde inícios dos anos 1970) como importantes dimensões da pesquisa historiográfica.


Não é menos significativo o fato de Huizinga ter sido um historiador cujas preocupações carregavam, em semente, as marcas da globalidade. Não deixa de ser curioso que o autor de O Outono da Idade Média, esse livro aparentemente tão radicado numa concepção europeia de história, tenha sido um erudito extremamente interessado na antiga Índia e que, em certo momento, planejou dedicar-se à história do Islã. Obviamente o treinamento de Huizinga, nesse particular, deu-se nos antigos quadros do orientalismo europeu, cuja crítica tão necessária aprendemos a realizar; mas nós, historiadores e historiadoras, sabemos que toda crítica funciona desde que feita em perspectiva; e o que esse olhar perspectivo nos revela é que semelhante treino orientalista, não obstante suas limitações, permitiu a Huizinga atingir a desfamiliarização frente à sua própria cultura. Essa atenção ao distante e seu reflexo, o olhar marcado pelo estranhamento que o sujeito dirige à sua própria realidade, plasmaram a obra historiográfica de Johan Huizinga e ajudaram-no a elaborar seus questionamentos mais penetrantes, muito antes que a antropologia nos ensinasse a importância dessa atitude humilde. Desnecessário dizer que o interesse pelo distante, e a desfamiliarização em relação à sua própria cultura, são ingredientes sem os quais a historiografia ocidental jamais atingiria as condições que possui, hoje, para pensar a história tardo-medieval e cedo-moderna em termos globais e não-eurocêntricos.

E será que a famosa aversão de Huizinga ao mundo moderno, o mundo do maquinário que ele via como desesperadamente carente de beleza, não pode iluminar nossa situação presente, marcada por um senso não apenas de que o avanço tecnológico nos fere a sensibilidade estética, mas de que ele pode destruir nossa vida e o mundo no qual vivemos? Huizinga também inquietou-se com essa possibilidade, assim como percebeu e condenou o fascismo em seu nascedouro – num momento em que muita gente ainda não compreendia seus aspectos mais tenebrosos e destrutivos.


No encontro com a obra, múltipla e variegada, de Johan Huizinga, este Simpósio pretende levar-nos a refletir sobre como esse autor assumiu posições, enquanto historiador e enquanto intelectual. Nossa esperança é que, dentre os vários frutos de nosso esforço, colhamos também uma inspiração para o necessário enfrentamento dos desafios de nosso próprio tempo.

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